sábado, 4 de agosto de 2012

Visões

  Estava apressada. Saíra correndo de casa quase esquecendo a água a ferver, o que já se fizera um comportamento tradicional. Tropeçou na escada, equilibrando-se somente no último degrau, tirando assim a diversão do menino que morava no chalé do outro lado da rua, e que já conhecendo o comportamento da moça, parara de brincar no instante que a viu chaveando a porta, esperando pelo tombo que tomava como certo. Sempre fora meio distraída quando pensava no grande amor de sua vida.
 Buscou na bolsa pelo telefone, abrindo a imensa lista de mensagens de texto e procurando novamente pela confirmação do encontro que teria naquela tarde. Sorriu mais uma vez ao ler "no lugar de sempre, às 3 da tarde" e guardou o telefone.
 Desceu a rua, quase que saltitante, em direção à esquina onde ficava o café, distante três quadras dali, enquanto se olhava a cada loja que passava, tentando ver a cada dúzia de metros se o seu cabelo ainda estava arrumado e se o vestido continuava no lugar. Dobrou a esquina distraída em pensamentos sobre seu amado, o brilho de seu olhar, o cheiro do seu perfume, em como o tempo parecia voar quando estava com ele, que por horas falava a sua conversa sem sentido algum, enquanto gesticulava freneticamente com as mãos. Pelo menos os gestos davam algum sentido àquela conversa. E foi por isso que não deu muita atenção ao policial, que lhe abanava os braços enquanto mexia a boca falando coisas que não faziam sentido nenhum, mas ele, afinal, não estava em condições de lhe dar ordens brincando de se esconder atrás de sua viatura.
 Virou o rosto para a vidraça da cafeteria, à esquerda, para dar mais uma olhada no cabelo e no vestido antes de entrar, quando reparou no rapaz do outro lado da vidraça, seu rapaz. Que ergueu a mão, segurando nem flores e nem alianças, mas algo diferente, que fez a vidraça quebrar com vibrações de ar e um clarão repentino.
 A moça teve o corpo balançado, mas ainda se manteve em pé. Até que, em um ou dois segundos, tombou enquanto as coisas começavam a borrar em sua visão.
 Não podia ouvir nada, em verdade nunca pode, já nascera surda. Mas a dor ela podia sentir, e aquilo doía demais, doía mais do que o buraco em seu peito, do qual o sangue escorria sem cessar. Aquela dor de ter o mais importante da vida roubado, a própria vida, e não poder descobrir sequer o porquê.