quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O espelho



         "Que belo!" - exclamavam diante dele. Intrigava-se mais e mais a cada vez que isso ocorria. 
         Que triste sina tinha, estar diante dos demais e atrair olhares para si, porém, sendo incapazes de vê-lo, pois procuravam-no com o intuito de ver a si próprios, somente.
         E por refletí-los, absorvia tudo o que eram, tornava-se o outro. Estava ali o tempo todo, como um amigo abraçando quem estava no reflexo, mas nunca por tempo suficiente de não mais sentir-se sozinho. Não tinha escolha senão deixar que partissem, levando nas retinas seu brilho juntamente com a imagem refletida. Traiçoeiras retinas de brilho efêmero que por vezes lhe despertaram paixões e que por serem cegas, materiais e falsas levavam tudo de si deixando somente o vazio em troca. 
         Por vezes lhe procuravam por ter em si resquícios da imagem do andarilho, que estivera um dia à sua frente. Deixava que se aproximassem na esperança de encontrá-lo, embora soubesse que do andarilho nada tinha, senão a lembrança. 
         Do vazio que lhe deixavam ele se preenchia... até que decidiu não mais se importar, afastando-se das luzes para refletir somente a escuridão. E por estar vagando na escuridão adentrou sem perceber aos domínios de Dimensão Paralela, onde se quebrou ao chocar-se com uma fonte, dentro de um jardim. 
         Desfeito em mil pedaços, fundiu-se com a água e pela primeira vez teve seus desejos ouvidos: "Queria que em meu brilho enxergassem valor. Queria ter ao menos a metade de uma flor!". E neste dia, imerso na fonte dos desejos, o espelho mudou sua sina. Tornou-se uma jóia, que foi encontrada por Rosa.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Rosa


      Rosa vagava pelo mundo com os olhos vendados. As vendas estavam ali desde que Cotidiano as colocara. Tinha a impressão de que foi logo após ter conhecido aquele belo rapaz chamado Discernimento, mas não tinha certeza, já havia se passado muito tempo.
      Embora não lembrasse da sensação de não tê-las, lhe causavam certa angústia. Estava acordada, era evidente! Os outros quatro sentidos lhe diziam que havia um mundo em movimento, talvez ao seu redor, talvez somente à sua frente. Não sabia dizer, já que por vezes cada parte de si lhe mostrava algo diferente.
      Por viver dentre os espinhos, suas pétalas que um dia foram sedosas e perfumadas estavam feias e machucadas. Rosa não acreditava que encontraria o lugar almejado, de terra fértil, macia e sem espinhos onde pudesse fixar seu caule. Talvez em decorrência das tantas luas oscilantes desde que vira pela última vez sua amiga Esperança, que lhe remetia às maravilhas daquele lugar.
      Tateava os muros mas não encontrava a saída. Até que, em um dia especialmente iluminado, os portões de um jardim secreto se abriram diante dela e nele Rosa encontrou a Maravilhosa Fonte dos Desejos a atender seus anseios: "Que caiam as vendas, e que Rosa veja o mundo!".
      Assim, Rosa enxergou a luz. E o clarão ofuscante pouco a pouco foi se transformando em curiosas figuras cercando aquele portal que a levaria até Dimensão Paralela. Naquele lugar, descobriu maravilhosos tesouros cercando uma jóia rara. E ao tocar a jóia lembrou como era sentir paz. E quiz para si a paz, a jóia e os tesouros.
      Ao esquecer suas angústias, pôde ver que o tempo não existia. Estava deliciosamente perdida entre os extremos princípio e fim e sua felicidade era tão plena que não podia ser abalada pelos velhos paradigmas. Nas mãos de       Rosa a jóia que até então se preenchia de vazio, transbordou com seu perfume. E por estarem preenchidas de paz e de perfume, ambas conheceram a plenitude, pois era tudo o que almejavam.
      Mas não há bem que sempre dure, assim diz o ditado. Ao olhar para a frente, Rosa viu despontar no horizonte a silhueta do andarilho. Ele adentrou o portal a passos largos e com o olhar nublado, como quem volta de longe trazendo em suas mãos mais espinhos. Vinha reivindicar as pétalas de Rosa que um dia macias perfumaram seu mundo, porém machucadas pelos espinhos que carregava já não podiam voltar ao jardim onde eram cultivadas. E de desespero, Rosa chorou. Na presença do andarilho sua jóia, agora tão bela e cheia de perfume, voltaria a se preencher de vazio.
      O portal e os portões se fecharam, Rosa sem a vendas foi arrastada de volta aos domínios de Cotidiano. Olhou para suas mãos e percebeu que além da jóia, carregara consigo também um questionamento: doar-se por amor! Assim sua mãe havia lhe ensinado. Mas será que doar-se por amor significava amar a jóia e a completar naquela plenitude? Ou abrir mão de seu amor próprio para entregá-lo ao andarilho e ao mundo que havia ao seu redor?
      Sim! Um mundo ao seu redor! Agora tinha certeza!
      Levantou-se do chão, sacudiu a poeira. Tendo em mãos sua jóia seguiu adiante sem medo. Não importava a direção do andarilho ou a quantidade de espinhos que trouxesse em suas mãos. Sua missão era inundar com seu perfume onde houvesse vazio. E onde há espinhos, não há vazio.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Foi preciso morrer


Karl deslizava pela rua, à noite, inconsciente de que caminhava. Os pensamentos abafavam o ruído de seus passos, gritando dentro dele, jogando em sua cara a culpa pelos seus erros, pelos erros de outros. Seus olhos estavam alheios a tudo, disfuncionais, e a consciência projetava em sua mente imagens do passado, que substituiam sua visão. Não percebeu a figura que se aproximava, de mãos trêmulas e intenção egoísta. O estranho também não percebeu a inocência no gesto distraído de Karl, que lhe esbarrara de leve o ombro, quando este se preparava para bradar as palavras que davam início ao assalto. Karl não via ainda seu agressor, ao passo que ele lhe entregava à testa o beijo frio do cano de aço, que em desespero impulsivo se colocou a cuspir chumbo e chamas. Karl só se dera conta do viciado que o assassinara por medo quando este revirava seu corpo à procura de seus pertences.
Mas a esta altura Karl já estava morto, e assim permaneceu por um bom tempo, tempo suficiente para perceber sua realidade. Desperdiçara os últimos minutos de sua vida em existencialismo desnecessário, em auto-piedade. Ali parado, sentindo o fluido rubro que vazava de seu lobo frontal, e aproveitando o tempo infinito de que dispunha, meditou. Decidiu por fim que viveria um pouco menos preocupado, olhando menos pra dentro de si, e mais à sua volta. Tateou pelo chão molhado de sangue, juntou os pedaços maiores de cérebro que pôde encontrar, colocou-os de volta pelo buraco da cabeça e cobriu com alguns cacos de crânio. Levantou-se e continuou andando, um tanto mais vivo, e com a cabeça um pouco mais vazia.

sábado, 15 de setembro de 2012

Dos blues em vermelho


    Fitava-o daquela mesa logo à frente do palco. Amava-o. Tinha consciência de todos os olhares, de toda a falsa admiração e interesse que também o fitavam, dos deslumbres momentâneos que se extinguiriam ao término daquele blues. Trechos da carta que escreveria para ele rodopiavam em sua cabeça, dispersos:
   “...ultrapassaste a parede frágil da minha indiferença, e fizeste teu ninho no porão escuro em que por tantos anos mantive encaixotados todos esses sentimentos empoeirados, dos quais descobri que ainda posso usufruir, como se nunca ninguém os tivesse quebrado...”
   “...viverei por ti, manterei cada um dos que querem teu mal afastado, não deixarei que te roubem, que te coloquem no bolso e que ali te esqueçam. Te alertarei sobre o abismo das presunções interesseiras que te cercam...”
    "... cortarei tua garganta com lâmina fina e gesto delicado, para que o sangue, em tentativa desesperada de abandonar o corpo que agora perece, se depare com uma estreita passagem, por onde será convidado a escorrer preguiçosamente, levando consigo, entre seus pertences, tua consciência, tua vida. E nos curtos instantes de agonia que tu vivenciarás, e que para ti se farão décadas, eu te terei todo para mim, teus pensamentos, teus sentidos, tua dor, todos consequência de meu ato, até o momento derradeiro. O sentimento de uma vida, comprimido em um minuto. É o que quero de ti."
    Sentiu tudo isso no decorrer de uma música. Da primeira música. Sentiu que o conhecia melhor do que ele próprio, ainda que nunca antes o tivesse encontrado.

sábado, 4 de agosto de 2012

Visões

  Estava apressada. Saíra correndo de casa quase esquecendo a água a ferver, o que já se fizera um comportamento tradicional. Tropeçou na escada, equilibrando-se somente no último degrau, tirando assim a diversão do menino que morava no chalé do outro lado da rua, e que já conhecendo o comportamento da moça, parara de brincar no instante que a viu chaveando a porta, esperando pelo tombo que tomava como certo. Sempre fora meio distraída quando pensava no grande amor de sua vida.
 Buscou na bolsa pelo telefone, abrindo a imensa lista de mensagens de texto e procurando novamente pela confirmação do encontro que teria naquela tarde. Sorriu mais uma vez ao ler "no lugar de sempre, às 3 da tarde" e guardou o telefone.
 Desceu a rua, quase que saltitante, em direção à esquina onde ficava o café, distante três quadras dali, enquanto se olhava a cada loja que passava, tentando ver a cada dúzia de metros se o seu cabelo ainda estava arrumado e se o vestido continuava no lugar. Dobrou a esquina distraída em pensamentos sobre seu amado, o brilho de seu olhar, o cheiro do seu perfume, em como o tempo parecia voar quando estava com ele, que por horas falava a sua conversa sem sentido algum, enquanto gesticulava freneticamente com as mãos. Pelo menos os gestos davam algum sentido àquela conversa. E foi por isso que não deu muita atenção ao policial, que lhe abanava os braços enquanto mexia a boca falando coisas que não faziam sentido nenhum, mas ele, afinal, não estava em condições de lhe dar ordens brincando de se esconder atrás de sua viatura.
 Virou o rosto para a vidraça da cafeteria, à esquerda, para dar mais uma olhada no cabelo e no vestido antes de entrar, quando reparou no rapaz do outro lado da vidraça, seu rapaz. Que ergueu a mão, segurando nem flores e nem alianças, mas algo diferente, que fez a vidraça quebrar com vibrações de ar e um clarão repentino.
 A moça teve o corpo balançado, mas ainda se manteve em pé. Até que, em um ou dois segundos, tombou enquanto as coisas começavam a borrar em sua visão.
 Não podia ouvir nada, em verdade nunca pode, já nascera surda. Mas a dor ela podia sentir, e aquilo doía demais, doía mais do que o buraco em seu peito, do qual o sangue escorria sem cessar. Aquela dor de ter o mais importante da vida roubado, a própria vida, e não poder descobrir sequer o porquê.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O Barqueiro - Parte III


O Barqueiro conduziu seu barco até uma margem qualquer, e o abandonou. Seguiu então rastejando por ruas populadas de gente ocupada. Suas mãos se feriam à medida que se arrastava pelo piso áspero, e o sol quente lhe queimava as costas, e as fazia arder. Ninguém amparava o Barqueiro, e os poucos olhares que recebia eram de pena desapegada. Cidade fantasma populada de gente. Gente sem alma, sem vida, que ainda assim perambulava freneticamente por aquelas ruas, temente à morte. Ali estava o Barqueiro, figura denegrida, humilhada, fraca, se arrastando delirante em sua ânsia por encontrar. E assim continuou, continuou por anos, atravessando aquele caminho que seguia sempre em linha reta, e que o Barqueiro, e o Barqueiro apenas, percebia, se mantinha delimitado por paredes formadas do que pareciam ser indivíduos de terno e gravata, e malas na mão, completamente estáticos, imutáveis, inflexíveis. Ninguém tentava ultrapassar aquelas paredes, ninguém parecia se dar conta de que se encontrava, não em uma prisão, mas em um caminho tendencioso e manipulado. Mas o barqueiro, ainda que compreendesse aquele horror tão intensamente sutil, continuou pelo caminho. Prosseguiu, arrastando com a força dos braços seu corpo magro que terminava em uma cauda dupla formada por suas pernas imóveis. Continuava ignorado, tendo muitas vezes suas mãos pisoteadas pelos autômatos vestidos de gente que perambulavam em ida e vinda por aquela grande estrada reta de margens emparedadas.
                Exausto e com as mãos formigando, os braços já trêmulos, os músculos explodindo de agonia, o Barqueiro resolveu mudar de estratégia. Tentou levantar-se, e em sua primeira tentativa, recebeu um encontrão de um dos transeuntes. Caiu com o rosto no chão. Viu o homem que o havia derrubado continuar caminhando, aos tropeços, até se reestabilizar, sem ao menos ter se dado conta do obstáculo. Tentou novamente. Seus braços pareciam agora acometidos por uma espécie de epilepsia, que contaminava até mesmo sua face, fazendo seu dentes se chocarem, em frenesi nervoso, uns contra os outros. Estava com os braços completamente tensionados, o tronco elevado, mas as pernas se mantinham penduradas no corpo, débeis, inúteis, e o barqueiro desabou de exaustão.  Não. Não desistiria ainda. Pensou. Concentrou-se em suas pernas. O esforço mental empregado parecia muito pior do que o esforço necessário para se erguer sobre seus braços, mas não o exauria tanto, e ele continou. Já estava há horas engajado em uma luta mental contra seus próprios nervos, quando sentiu os músculos da coxa latejando. Bom sinal. Manteve o esforço, manteve-se imaginando os impulsos elétricos que se alastravam pelos nervos de sua perna até chegarem à extremidade dos dedos, e de volta. Via esses impulsos. Sentia-os. Sentia-os de verdade. E a perna se moveu.
Apoiou-se novamente nas mãos, e os braços já não doiam tanto. Levantou-se cambaleando, uma única perna provendo toda a sustentação do seu corpo. As paredes lhe seriam úteis agora. Andou, apoiado nas barreiras humanas, se segurando em mangas escuras de tecido fosco, lapelas de corte impecável, maletas brilhantes de verniz. Com o passar das horas já conseguia andar nas duas pernas. E então se viu livre da cidade, das estrada, das barreiras, das pessoas, ou seja lá o que elas fossem. Estava em uma enseada. Ouvia gaivotas dialogando em grasnados e sentia o cheiro salgado do litoral. E ao longe, cortando a beleza límpida e harmoniosa do mar, um banco de rochas que emergia da água. E sobre ele um barco encalhado.

O Barqueiro - Parte II


Se via então a contemplar o espectro luminoso que refletia na superfície do lago, diante de seus olhos. "Não é mesmo uma pena?" Pensou o Barqueiro, zombando de si mesmo. Sentou à borda do barco, superfície instável que outrora servira de ferramenta em sua busca incessante. Se pôs a pensar, com os olhos fixos na água, e assim permaneceu, até que sua barba tomasse conta do rosto, sua pele se colasse aos ossos e suas pernas se atrofiassem. Decidiu então que se aventuraria pela terra, abandonando por hora seus sonhos de barqueiro, até que pudesse aprender a nadar. Mas teria agora que reaprender a andar.

O Barqueiro - Parte I

Escrevi isso lá pelo final de 2009, acho que no Orkut. O.o

O Barqueiro remava pela escuridão enevoada das calmas águas que o cercavam, a chama fraca de uma lamparina como sua única guia. Atravessou a esmo a cortina negra da noite, sua frustração pela busca falha se intensificando, trazendo pensamentos negativos à sua mente:
"Não, eu não farei o que eles querem. Ao invés disso, tentarei estender minha existência ociosa e passivamente, até o ponto em que não mais poderei tolerar a coação de meus objetivos. Então chegará a hora de extinguir a chama, de uma vez por todas."
Olhou então para o espelho distorcido da água, o fluxo do tempo refletindo até suas retinas.
Atravessou o reflexo com os olhos, e percebeu que só lhe restava observar.
Pois ele era um barqueiro, e remar era só o que sabia.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Os trilhos

Escrevi isso aqui lá pelo final de fevereiro. É o sentimento que me causa ouvir "All I Want", do A Day to Remember, e eu fico feliz de poder descrevê-lo. E tô aproveitando o blog pra postar, pra que esse texto não se perca pelo facebook, ou na ocasionalidade de um hd queimado.

Eu me encontrava deitado sobre os trilhos, aguardando o momento em que começassem a vibrar. Foi sutil à princípio, um reverberar quase imperceptível que se alastrava pelo ferro. Foi ficando mais forte, até o ponto em que era possível notar a poeira que levantava das vigas. Me pus de pé e esperei até que o gigante de aço entrasse em meu campo de visão. E lá estava ele, veloz, imponente, reluzindo contra a luz alaranjada do pôr-do-sol. Desatei a correr pelos trilhos, em direção àquele colosso mecânico. Eu corria rápido, e sentia o vento resfriando o suor em minha testa, um turbilhão de pensamentos repetidos girava em minha cabeça: -Tudo que eu quero é um lugar pra chamar de meu. Eu sentia o trepidar dos meus passos em contato, ora com o saibro, ora com a madeira: -Tudo que eu quero é um lugar pra chamar de meu. Cada vez mais perto agora. Um apito soava, alertando que o trem não pararia. Eu também não: -Tudo que eu quero é um lugar pra chamar de meu. O tom do apito era quase uma súplica agora. Eu sentia a turbulência da aproximação com o imenso corpo. Me armei, com um ombro à frente, ainda em movimento, pronto para o choque: -Tudo que eu quero é um lugar para chamar de meu. Aconteceu. Por uma fração de segundo tudo pareceu tomado por vácuo. Nenhum barulho. E então o estrondo. A mistura de atrito, deslocamento de ar e metal retorcendo deram origem a um som ao mesmo tempo grave e agudo, dissonante, ensurdecedor. Vi os vagões que se engavetavam, e que sem espaço para se acomodarem no solo, começavam a subir e se revirar em várias direções. Caos, faísca, fumaça, fogo. Eu ainda não havia parado, e quando finalmente tomei controle do impulso remanescente da corrida, já havia percorrido toda a extensão do trem, e me virei para observá-lo. A fumaça que subia em padrões espiralados por entre as ferragens dava a impressão de que o metal se movia, como a respiração fraquejante de um enorme animal que jazia no solo, abatido, derrotado. E eu permanecia nos trilhos, de pé, ileso. E tendo o mundo inteiro à minha frente.