O Barqueiro conduziu seu barco
até uma margem qualquer, e o abandonou. Seguiu então rastejando por ruas populadas de gente ocupada. Suas mãos se
feriam à medida que se arrastava pelo piso áspero, e o sol quente lhe queimava
as costas, e as fazia arder. Ninguém amparava o Barqueiro, e os poucos olhares
que recebia eram de pena desapegada. Cidade fantasma populada de gente. Gente
sem alma, sem vida, que ainda assim perambulava freneticamente por aquelas
ruas, temente à morte. Ali estava o Barqueiro, figura denegrida, humilhada,
fraca, se arrastando delirante em sua ânsia por encontrar. E assim continuou,
continuou por anos, atravessando aquele caminho que seguia sempre em linha
reta, e que o Barqueiro, e o Barqueiro apenas, percebia, se mantinha delimitado
por paredes formadas do que pareciam ser indivíduos de terno e gravata, e malas
na mão, completamente estáticos, imutáveis, inflexíveis. Ninguém tentava
ultrapassar aquelas paredes, ninguém parecia se dar conta de que se encontrava,
não em uma prisão, mas em um caminho tendencioso e manipulado. Mas o barqueiro,
ainda que compreendesse aquele horror tão intensamente sutil, continuou pelo
caminho. Prosseguiu, arrastando com a força dos braços seu corpo magro que
terminava em uma cauda dupla formada por suas pernas imóveis. Continuava ignorado,
tendo muitas vezes suas mãos pisoteadas pelos autômatos vestidos de gente que
perambulavam em ida e vinda por aquela grande estrada reta de margens
emparedadas.
Exausto
e com as mãos formigando, os braços já trêmulos, os músculos explodindo de
agonia, o Barqueiro resolveu mudar de estratégia. Tentou levantar-se, e em sua
primeira tentativa, recebeu um encontrão de um dos transeuntes. Caiu com o
rosto no chão. Viu o homem que o havia derrubado continuar caminhando, aos
tropeços, até se reestabilizar, sem ao menos ter se dado conta do obstáculo.
Tentou novamente. Seus braços pareciam agora acometidos por uma espécie de
epilepsia, que contaminava até mesmo sua face, fazendo seu dentes se chocarem, em
frenesi nervoso, uns contra os outros. Estava com os braços completamente
tensionados, o tronco elevado, mas as pernas se mantinham penduradas no corpo,
débeis, inúteis, e o barqueiro desabou de exaustão. Não. Não desistiria ainda. Pensou.
Concentrou-se em suas pernas. O esforço mental empregado parecia muito pior do
que o esforço necessário para se erguer sobre seus braços, mas não o exauria tanto, e
ele continou. Já estava há horas engajado em uma luta mental contra seus
próprios nervos, quando sentiu os músculos da coxa latejando. Bom sinal. Manteve
o esforço, manteve-se imaginando os impulsos elétricos que se alastravam pelos
nervos de sua perna até chegarem à extremidade dos dedos, e de volta. Via esses
impulsos. Sentia-os. Sentia-os de verdade. E a perna se moveu.
Apoiou-se novamente nas mãos, e
os braços já não doiam tanto. Levantou-se cambaleando, uma única perna provendo
toda a sustentação do seu corpo. As paredes lhe seriam úteis agora. Andou,
apoiado nas barreiras humanas, se segurando em mangas escuras de tecido fosco, lapelas
de corte impecável, maletas brilhantes de verniz. Com o passar das horas já
conseguia andar nas duas pernas. E então se viu livre da cidade, das estrada,
das barreiras, das pessoas, ou seja lá o que elas fossem. Estava em uma
enseada. Ouvia gaivotas dialogando em grasnados e sentia o cheiro salgado do litoral.
E ao longe, cortando a beleza límpida e harmoniosa do mar, um banco de rochas
que emergia da água. E sobre ele um barco encalhado.