sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Foi preciso morrer


Karl deslizava pela rua, à noite, inconsciente de que caminhava. Os pensamentos abafavam o ruído de seus passos, gritando dentro dele, jogando em sua cara a culpa pelos seus erros, pelos erros de outros. Seus olhos estavam alheios a tudo, disfuncionais, e a consciência projetava em sua mente imagens do passado, que substituiam sua visão. Não percebeu a figura que se aproximava, de mãos trêmulas e intenção egoísta. O estranho também não percebeu a inocência no gesto distraído de Karl, que lhe esbarrara de leve o ombro, quando este se preparava para bradar as palavras que davam início ao assalto. Karl não via ainda seu agressor, ao passo que ele lhe entregava à testa o beijo frio do cano de aço, que em desespero impulsivo se colocou a cuspir chumbo e chamas. Karl só se dera conta do viciado que o assassinara por medo quando este revirava seu corpo à procura de seus pertences.
Mas a esta altura Karl já estava morto, e assim permaneceu por um bom tempo, tempo suficiente para perceber sua realidade. Desperdiçara os últimos minutos de sua vida em existencialismo desnecessário, em auto-piedade. Ali parado, sentindo o fluido rubro que vazava de seu lobo frontal, e aproveitando o tempo infinito de que dispunha, meditou. Decidiu por fim que viveria um pouco menos preocupado, olhando menos pra dentro de si, e mais à sua volta. Tateou pelo chão molhado de sangue, juntou os pedaços maiores de cérebro que pôde encontrar, colocou-os de volta pelo buraco da cabeça e cobriu com alguns cacos de crânio. Levantou-se e continuou andando, um tanto mais vivo, e com a cabeça um pouco mais vazia.

sábado, 15 de setembro de 2012

Dos blues em vermelho


    Fitava-o daquela mesa logo à frente do palco. Amava-o. Tinha consciência de todos os olhares, de toda a falsa admiração e interesse que também o fitavam, dos deslumbres momentâneos que se extinguiriam ao término daquele blues. Trechos da carta que escreveria para ele rodopiavam em sua cabeça, dispersos:
   “...ultrapassaste a parede frágil da minha indiferença, e fizeste teu ninho no porão escuro em que por tantos anos mantive encaixotados todos esses sentimentos empoeirados, dos quais descobri que ainda posso usufruir, como se nunca ninguém os tivesse quebrado...”
   “...viverei por ti, manterei cada um dos que querem teu mal afastado, não deixarei que te roubem, que te coloquem no bolso e que ali te esqueçam. Te alertarei sobre o abismo das presunções interesseiras que te cercam...”
    "... cortarei tua garganta com lâmina fina e gesto delicado, para que o sangue, em tentativa desesperada de abandonar o corpo que agora perece, se depare com uma estreita passagem, por onde será convidado a escorrer preguiçosamente, levando consigo, entre seus pertences, tua consciência, tua vida. E nos curtos instantes de agonia que tu vivenciarás, e que para ti se farão décadas, eu te terei todo para mim, teus pensamentos, teus sentidos, tua dor, todos consequência de meu ato, até o momento derradeiro. O sentimento de uma vida, comprimido em um minuto. É o que quero de ti."
    Sentiu tudo isso no decorrer de uma música. Da primeira música. Sentiu que o conhecia melhor do que ele próprio, ainda que nunca antes o tivesse encontrado.

sábado, 4 de agosto de 2012

Visões

  Estava apressada. Saíra correndo de casa quase esquecendo a água a ferver, o que já se fizera um comportamento tradicional. Tropeçou na escada, equilibrando-se somente no último degrau, tirando assim a diversão do menino que morava no chalé do outro lado da rua, e que já conhecendo o comportamento da moça, parara de brincar no instante que a viu chaveando a porta, esperando pelo tombo que tomava como certo. Sempre fora meio distraída quando pensava no grande amor de sua vida.
 Buscou na bolsa pelo telefone, abrindo a imensa lista de mensagens de texto e procurando novamente pela confirmação do encontro que teria naquela tarde. Sorriu mais uma vez ao ler "no lugar de sempre, às 3 da tarde" e guardou o telefone.
 Desceu a rua, quase que saltitante, em direção à esquina onde ficava o café, distante três quadras dali, enquanto se olhava a cada loja que passava, tentando ver a cada dúzia de metros se o seu cabelo ainda estava arrumado e se o vestido continuava no lugar. Dobrou a esquina distraída em pensamentos sobre seu amado, o brilho de seu olhar, o cheiro do seu perfume, em como o tempo parecia voar quando estava com ele, que por horas falava a sua conversa sem sentido algum, enquanto gesticulava freneticamente com as mãos. Pelo menos os gestos davam algum sentido àquela conversa. E foi por isso que não deu muita atenção ao policial, que lhe abanava os braços enquanto mexia a boca falando coisas que não faziam sentido nenhum, mas ele, afinal, não estava em condições de lhe dar ordens brincando de se esconder atrás de sua viatura.
 Virou o rosto para a vidraça da cafeteria, à esquerda, para dar mais uma olhada no cabelo e no vestido antes de entrar, quando reparou no rapaz do outro lado da vidraça, seu rapaz. Que ergueu a mão, segurando nem flores e nem alianças, mas algo diferente, que fez a vidraça quebrar com vibrações de ar e um clarão repentino.
 A moça teve o corpo balançado, mas ainda se manteve em pé. Até que, em um ou dois segundos, tombou enquanto as coisas começavam a borrar em sua visão.
 Não podia ouvir nada, em verdade nunca pode, já nascera surda. Mas a dor ela podia sentir, e aquilo doía demais, doía mais do que o buraco em seu peito, do qual o sangue escorria sem cessar. Aquela dor de ter o mais importante da vida roubado, a própria vida, e não poder descobrir sequer o porquê.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O Barqueiro - Parte III


O Barqueiro conduziu seu barco até uma margem qualquer, e o abandonou. Seguiu então rastejando por ruas populadas de gente ocupada. Suas mãos se feriam à medida que se arrastava pelo piso áspero, e o sol quente lhe queimava as costas, e as fazia arder. Ninguém amparava o Barqueiro, e os poucos olhares que recebia eram de pena desapegada. Cidade fantasma populada de gente. Gente sem alma, sem vida, que ainda assim perambulava freneticamente por aquelas ruas, temente à morte. Ali estava o Barqueiro, figura denegrida, humilhada, fraca, se arrastando delirante em sua ânsia por encontrar. E assim continuou, continuou por anos, atravessando aquele caminho que seguia sempre em linha reta, e que o Barqueiro, e o Barqueiro apenas, percebia, se mantinha delimitado por paredes formadas do que pareciam ser indivíduos de terno e gravata, e malas na mão, completamente estáticos, imutáveis, inflexíveis. Ninguém tentava ultrapassar aquelas paredes, ninguém parecia se dar conta de que se encontrava, não em uma prisão, mas em um caminho tendencioso e manipulado. Mas o barqueiro, ainda que compreendesse aquele horror tão intensamente sutil, continuou pelo caminho. Prosseguiu, arrastando com a força dos braços seu corpo magro que terminava em uma cauda dupla formada por suas pernas imóveis. Continuava ignorado, tendo muitas vezes suas mãos pisoteadas pelos autômatos vestidos de gente que perambulavam em ida e vinda por aquela grande estrada reta de margens emparedadas.
                Exausto e com as mãos formigando, os braços já trêmulos, os músculos explodindo de agonia, o Barqueiro resolveu mudar de estratégia. Tentou levantar-se, e em sua primeira tentativa, recebeu um encontrão de um dos transeuntes. Caiu com o rosto no chão. Viu o homem que o havia derrubado continuar caminhando, aos tropeços, até se reestabilizar, sem ao menos ter se dado conta do obstáculo. Tentou novamente. Seus braços pareciam agora acometidos por uma espécie de epilepsia, que contaminava até mesmo sua face, fazendo seu dentes se chocarem, em frenesi nervoso, uns contra os outros. Estava com os braços completamente tensionados, o tronco elevado, mas as pernas se mantinham penduradas no corpo, débeis, inúteis, e o barqueiro desabou de exaustão.  Não. Não desistiria ainda. Pensou. Concentrou-se em suas pernas. O esforço mental empregado parecia muito pior do que o esforço necessário para se erguer sobre seus braços, mas não o exauria tanto, e ele continou. Já estava há horas engajado em uma luta mental contra seus próprios nervos, quando sentiu os músculos da coxa latejando. Bom sinal. Manteve o esforço, manteve-se imaginando os impulsos elétricos que se alastravam pelos nervos de sua perna até chegarem à extremidade dos dedos, e de volta. Via esses impulsos. Sentia-os. Sentia-os de verdade. E a perna se moveu.
Apoiou-se novamente nas mãos, e os braços já não doiam tanto. Levantou-se cambaleando, uma única perna provendo toda a sustentação do seu corpo. As paredes lhe seriam úteis agora. Andou, apoiado nas barreiras humanas, se segurando em mangas escuras de tecido fosco, lapelas de corte impecável, maletas brilhantes de verniz. Com o passar das horas já conseguia andar nas duas pernas. E então se viu livre da cidade, das estrada, das barreiras, das pessoas, ou seja lá o que elas fossem. Estava em uma enseada. Ouvia gaivotas dialogando em grasnados e sentia o cheiro salgado do litoral. E ao longe, cortando a beleza límpida e harmoniosa do mar, um banco de rochas que emergia da água. E sobre ele um barco encalhado.

O Barqueiro - Parte II


Se via então a contemplar o espectro luminoso que refletia na superfície do lago, diante de seus olhos. "Não é mesmo uma pena?" Pensou o Barqueiro, zombando de si mesmo. Sentou à borda do barco, superfície instável que outrora servira de ferramenta em sua busca incessante. Se pôs a pensar, com os olhos fixos na água, e assim permaneceu, até que sua barba tomasse conta do rosto, sua pele se colasse aos ossos e suas pernas se atrofiassem. Decidiu então que se aventuraria pela terra, abandonando por hora seus sonhos de barqueiro, até que pudesse aprender a nadar. Mas teria agora que reaprender a andar.

O Barqueiro - Parte I

Escrevi isso lá pelo final de 2009, acho que no Orkut. O.o

O Barqueiro remava pela escuridão enevoada das calmas águas que o cercavam, a chama fraca de uma lamparina como sua única guia. Atravessou a esmo a cortina negra da noite, sua frustração pela busca falha se intensificando, trazendo pensamentos negativos à sua mente:
"Não, eu não farei o que eles querem. Ao invés disso, tentarei estender minha existência ociosa e passivamente, até o ponto em que não mais poderei tolerar a coação de meus objetivos. Então chegará a hora de extinguir a chama, de uma vez por todas."
Olhou então para o espelho distorcido da água, o fluxo do tempo refletindo até suas retinas.
Atravessou o reflexo com os olhos, e percebeu que só lhe restava observar.
Pois ele era um barqueiro, e remar era só o que sabia.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Os trilhos

Escrevi isso aqui lá pelo final de fevereiro. É o sentimento que me causa ouvir "All I Want", do A Day to Remember, e eu fico feliz de poder descrevê-lo. E tô aproveitando o blog pra postar, pra que esse texto não se perca pelo facebook, ou na ocasionalidade de um hd queimado.

Eu me encontrava deitado sobre os trilhos, aguardando o momento em que começassem a vibrar. Foi sutil à princípio, um reverberar quase imperceptível que se alastrava pelo ferro. Foi ficando mais forte, até o ponto em que era possível notar a poeira que levantava das vigas. Me pus de pé e esperei até que o gigante de aço entrasse em meu campo de visão. E lá estava ele, veloz, imponente, reluzindo contra a luz alaranjada do pôr-do-sol. Desatei a correr pelos trilhos, em direção àquele colosso mecânico. Eu corria rápido, e sentia o vento resfriando o suor em minha testa, um turbilhão de pensamentos repetidos girava em minha cabeça: -Tudo que eu quero é um lugar pra chamar de meu. Eu sentia o trepidar dos meus passos em contato, ora com o saibro, ora com a madeira: -Tudo que eu quero é um lugar pra chamar de meu. Cada vez mais perto agora. Um apito soava, alertando que o trem não pararia. Eu também não: -Tudo que eu quero é um lugar pra chamar de meu. O tom do apito era quase uma súplica agora. Eu sentia a turbulência da aproximação com o imenso corpo. Me armei, com um ombro à frente, ainda em movimento, pronto para o choque: -Tudo que eu quero é um lugar para chamar de meu. Aconteceu. Por uma fração de segundo tudo pareceu tomado por vácuo. Nenhum barulho. E então o estrondo. A mistura de atrito, deslocamento de ar e metal retorcendo deram origem a um som ao mesmo tempo grave e agudo, dissonante, ensurdecedor. Vi os vagões que se engavetavam, e que sem espaço para se acomodarem no solo, começavam a subir e se revirar em várias direções. Caos, faísca, fumaça, fogo. Eu ainda não havia parado, e quando finalmente tomei controle do impulso remanescente da corrida, já havia percorrido toda a extensão do trem, e me virei para observá-lo. A fumaça que subia em padrões espiralados por entre as ferragens dava a impressão de que o metal se movia, como a respiração fraquejante de um enorme animal que jazia no solo, abatido, derrotado. E eu permanecia nos trilhos, de pé, ileso. E tendo o mundo inteiro à minha frente.

Os olhos


‎"-E como tu vai resolver essa merda agora?! - Acho que tinha sido a última coisa que eu ouvi, antes de me deixar absorver em pensamentos. Eu já estava no meu quarto cigarro, mas havia fumado apenas o primero. Todos os outros tinham sido acendidos por puro reflexo, depois que eu, tarde demais, e não de todo atento, percebia as cinzas acumuladas no chão e a bituca acabada, pendendo entre os dedos. Eu olhei mais uma vez pra ela, aquela mulher raivosa que agora cuspia xingamentos na minha cara. Exceto pelo belo olho azul que me assistia vidrado e sem piscar, enquanto a boca entoava as mais belas ofensas que ela conhecia, não havia mais nenhum traço da beleza modesta que ela exibira aos 19, quando nos conhecemos e embarcamos tola e impulsivamente nesse relacionamento fodido. Nem sei mais do que se tratava aquilo, parecia ainda um namoro, mas na verdade eram apenas dois idiotas que compartilhavam um apartamento podre e fedorento, e se aturavam por que ninguém mais os aturaria. No começo, aquela mutação exótica, um olho azul, o outro castanho, me atraia por inteiro. Mas com o tempo, à medida que me familiarizava com os defeitos e as imperfeições dela, passou a parecer para mim que era por trás daquele olho escuro que se escondia tudo de ruim que eu via nela. Eu não conseguia mais olhar para ele, e sempre me concentrava no azul. E só o que eu fazia no momento era olhá-la, ainda que na maior parte do tempo nem a visse mais, concentrado que eu estava em resolver na minha própria cabeça o problema que nós dois criamos juntos quando decidimos embarcar nessa bosta toda. Eu nem lembrava mais do que se tratava a discussão, alguma coisa sobre uma dívida que não conseguíamos pagar e agora era culpa minha. Ou podia ser também sobre a nossa discordância em que tipo de animal comprar para o apartamento. Ou sobre a caneca preferida dela que eu havia quebrado enquanto lavava a louça. Agora eu só fitava o cigarro, que já se encontrava perto do fim, sem ter sido tragado uma única vez. Era bonito como a luz da brasa oscilava no contato com o ar. Parecia algo pulsando, um coração batendo devagar, talvez. Eu precisava apagar aquele cigarro. Levei um tempo pra perceber que ela havia parado de falar, e me olhava apreensiva, algumas lágrimas de raiva escorrendo do belo olho azul. Ela devia estar esperando que eu dissesse alguma coisa. O que fiz, na verdade, foi passar uma mão pela nuca dela, algo que ela deve ter entendido como um gesto confortante, e que ela recebeu de bom grado. Me surpreendeu até. Mas eu precisava apagar aquele cigarro, e levei-o de encontro ao olho, que ela ainda tentou fechar, mas tarde demais. Me deleitei com a sinfonia gerada por aquilo tudo. O barulho fraco de algo fritando em uma chapa. O estalar dos frágeis tapas que ela desferia frenetica e instintivamente contra o meu rosto. O longo berro de agonia. Eu odiava aquele olho castanho, mas foi o azul que eu destruí. Agora não havia mais nada nela de que eu gostasse, nada mais que me prendesse a ela, e eu podia enfim ir embora."

sábado, 14 de abril de 2012

Os Confins - Parte II


3
Jörn se encontrava mais uma vez envolvido em pensamentos, revivendo minuciosamente os detalhes do sonho macabro que o impelira naquela busca incerta. Tentava entender o propósito, o plano divino – ou satânico – que o havia agraciado – ou amaldiçoado – com todas aquelas visões tão assutadoramente detalhadas e ainda assim tão enigmáticas sobre a jornada em que se lançara. Estava agora imaginando o que veria lá embaixo. As pistas deixadas pelo sonho sussuravam em seu interior o pressentimento de que encontraria naquele lugar toda uma sorte de medos e crenças íntimos seus, e que toda a preparação mental que fizesse para tentar antecipar e se proteger desses medos, seria por sua vez antecipada pela natureza sórdida e traiçoeira daqueles confins. Nunca havia acreditado em um Deus, mas fora criado cristão, e por tal razão, imaginava que o lugar se apresentaria a ele com a textura e os teores de um mundo bíblico, regado pela violência e contraditoriedade do Velho Testamento, e pelas profecias míticas e trovejantes do Apocalipse. Mas tentar prever os eventos que o cercariam era talvez a coisa mais perigosa a se fazer, pois aquele lugar o trairía, e, como um tribunal macabro do qual nada pode ser escondido, tudo o que pensasse seria usado contra ele.
Afastando esses pensamentos, Jörn se concentrou no que transcorria à sua volta. Não sabia há quanto tempo, mas já havia abandonado os becos úmidos entre apartamentos degradados, e estava agora descendo por uma escadaria de pedra, irregular, escorregadia, da qual não enxergava os degraus, ou o que estivesse o esperando alguns passos abaixo. Podia apenas ouvir seu trôpego guia descendo pacientemente à sua frente, e sentir o vento seco e frio que soprava lá de baixo. O tempo agora se tornara uma entidade completamente amórfica e sem significado. Pelo que bem entendia, podia estar descendo já há semanas. Mas Jörn seguia, indiferente a todo o absurdo que o cercava, com sua meta muito bem estabelecida, sua determinação pairando sobre si, indestrutível. Foi então que seus sentidos se alarmaram com um estímulo, um odor. O último cheiro que esperava sentir. Se preparara para o fedor da podridão, da morte, do enxofre. Mas nunca havia esperado que a primeira sensação olfativa que experimentaria em sua descida ao inferno fosse ser aquela. O perfume dela.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Eu, que era um cara legal


        O turno da noite no hospital psiquiátrico era realmente empolgante. Me assustava no começo, quando eu ainda era um residente novato. Mas não demorou muito até que eu começasse a apreciar a beleza daquele trabalho. Tinha lá seus altos e baixos. Algumas delas nem sabia usar um maldito penico, ou simplesmente não queriam fazê-lo, e eu passava horas naquelas alas com um pano encardido e fedendo a mijo, limpando toda a porcaria que aquelas vadias neuróticas faziam. Mas com o tempo eu me acostumei, e passei até a gostar delas. Era interessante trabalhar em uma ala exclusivamente feminina. Uma ou outra até dava pro gasto, e com um pouco de paciência, as vezes até rolava alguma coisa. Vez e outra, quando o dia tinha sido estressante e a vontade batia mesmo, tinha que ser forçado. Mas não tinha problema. A maioria delas já confidenciava tantas histórias bizarras à psiquiatra da casa, que não fazia diferença. Elas embaralhavam tudo na cabeça, e era até “normal” que fantasiassem com um residente que as visitava à noite para tomar-lhes o corpo. Eu duvido que elas conseguissem contar a coisa de uma maneira linear, de qualquer  forma. Uma devia dizer que era o pai que visitava ela, outra talvez falasse que estava sendo violentada pelo esfregão da sala de limpeza. Eu era um cara legal, carinhoso na maioria das vezes, exceto quando a psicose delas se tornasse irritantemente forte. Aí eu precisava pegar pesado. Mas elas logo esqueciam, ou pareciam não se importar muito. É que eu era um cara legal. 
Aí um dia apareceu uma nova, e ela tinha alguma coisa que me enlouqueceu. Virou minha preferida. Mas não tinha como persuadí-la, e ela tinha umas malditas unhas compridas que não me deixavam chegar perto. Certa vez ela me fez um talho na cara, com as porras daquelas unhas, que me deixou muito puto. Mas eu era um cara legal, e não bati muito nela, nem tentei nada depois daquilo. Eu acho que ela precisava de um tempo. Devia ser por que ela tinha alguém esperando por ela lá fora. Eu a via recebendo cartas e presentes todo tempo, mas nunca uma visita. Não me lembro de qualquer delas que recebesse uma visita. Eu ainda tentava me aproximar, mas seja lá quem fosse que estava lá fora, devia ser um cara legal também, por que ela parecia gostar bastante dele. Ela escrevia pra ele, e isso fazia eu me morder de ciúmes. Me fez tentar com mais afinco. Ela era forte, ela não deixava, ela esperneava, me arranhava com aquelas unhas, chegou até a tentar me morder, e era preciso acalmá-la, colocar ela no lugar dela, e acabava não acontecendo nada. 
         Mas um dia eu acho que conquistei ela. Eu ia fazer hora extra pela manhã, estava me preparando pra começar o meu turno, e  o funcionário responsável por vistoriar as correspondências não havia chegado ainda. Eu vi então, na portaria, uma encomenda para ela. Um envelope fino, achei que não ia ter problema fazer um agrado e entregá-lo a ela, e quando eu entrei na ala e mostrei o envelope, os olhos dela brilharam, agradecidos, maliciosos, e aí eu vi que eu tinha conseguido o que eu queria. Eu ia visitar ela mais tarde, depois que todo o trabalho tivesse aliviado um pouco. E me senti animado, quando pela tarde, ao passar pelo quarto dela, reparei que ela não estava mais com as unhas compridas. Parecia um sinal claro de que ela realmente queria. 
          No fim do turno eu encontrei ela sentada na cama, me esperando. E ela foi realmente complacente, e se levantou, e sorriu pra mim, e eu sorri de volta, e a abracei, e toquei ela, e me senti como não me sentia com nenhuma outra. Foi aquele sorriso safado, malicioso, a última coisa que eu vi, antes de sentir a fisgada aguda na virilha. Eu olhei para baixo, e a primeira coisa que eu enxerguei  foi o sangue esguichando violentamente, enxarcando minha roupa e escorrendo grosso por entre as frestas dos azulejos no chão. E eu não entedi a princípio, até poder ver a mão dela se afastando do meu corpo, e o fino objeto metálico que ela segurava, e que deslizou suavemente de dentro da minha virilha, fazendo mais sangue jorrar. O conteúdo do envelope daquela manhã. Uma lixa de unha. Daquelas pontiagudas. Eu devia ter imaginado. 
          A minha visão foi ficando turva, e eu fui perdendo meus sentidos. E eu não entendia por que ela tinha feito aquilo, logo comigo. Eu, que era um cara legal.

sábado, 7 de abril de 2012

Encontrada

Parte III 

  Quando abriu os olhos tudo estava borrado, mas ela teve a certeza de que algo tinha se movido rapidamente e sumido. Ergueu-se e observou o livro aberto em frente. Tentou lembrar o que estava fazendo, mas não conseguiu. Não lembrava o motivo pelo qual o tinha aberto. Aos poucos tudo ao seu redor foi tomando a devida forma. Observando o feixe fino e longo de luz que entrava pela fresta na janela, pode ver que o pó se movia rapidamente, 'algo estranho aconteceu aqui' constatou. Levantou-se e espreguiçou, sentia-se estranhamente cansada, parecia que estivera dormindo durante horas. Virou-se e encarou a pessoa que estava no espelho, na parede oposta a janela e a mesa de onde se levantara. Sorriu, e teve seu sorriso instantaneamente retribuido. Deu um passo a frente, gesto no qual não foi imitada. Mirou a moça do espelho, que sorriu mais uma vez de forma marota e saiu correndo em direção a porta.

Encontrada

Parte II


  Abriu com cuidado a porta e encontrou-a deitada imóvel, com a cabeça sobre o livro, o braço direito escorava a cabeça, enquanto o esquerdo pendia desajeitado para o lado da mesa. Mesmo assim, com os olhos fechados, podia-se notar que havia vestígios de uma expressão de ansiedade naquele rosto, que nem mesmo as rugas conseguiam camuflar. Estava dormindo sem respirar, um sono sem volta, um sonho eterno. Com algum esforço, conseguiu erguer a cabeça, empurrar o braço, e tomar o livro. Estava na última página, e nesta, apenas um risco que se perdia para além da borda podia ser visto. Passou a foleá-lo, de trás para frente, encontrando um risco em todas as páginas. Faz isso por um longo tempo, mas, o tempo para ele, não era um problema. Encontrou, por fim, a folha onde os riscos terminavam, e também começavam. Leu o que ali estava escrito, e um sorriso torto abriu-se em sua face. "Tola", disse em um sussurro. Com cuidado, arrancou a página que estava lendo, e guardou-a no bolso do seu casaco. Escreveu algo na página seguinte, depois de apagar todos os rabiscos que encontrou até o final. Da mesma forma que o removera, colocou novamente o livro debaixo da cabeça. Soprou no rosto dela, dizendo "acorde". Se desfez no ar um instante antes de os olhos dela abrirem novamente.

Encontrada

Parte I 

  Ela abre o livro dos dias e procura por hoje, tem pressa em encontrá-lo. Observa a página em branco, pensa, risca. "Deve haver algo na seguinte", conclui ela. Fecha os olhos, folheia, abre os olhos, nada. Não há nada lá. Risca outra vez, repete o rito consecutivamente. Próxima página, nada, rabisco. Freneticamente, agora, ela passa página por página. O tempo passa, o cansaço aparece, aos poucos vem o sono. Lentamente ela folheia, está chegando ao fim. "Só mais algumas", pensa. Chega, por fim, à última página. Ali, porém, adormece lentamente, fazendo o último risco com o toco do lápis, caindo em seu sono sem volta.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Os Confins - Parte I

Primeira vez que posto um texto em um blog... e é por partes, apesar de eu não fazer a mínima ideia de como dividir um texto. Pois bem, a proposta vai ficar bem clara no final. O título não sei se tem muito a ver, só sei que rima com "os quindins", então tá bom já.

1
Jörn  caminhava pela viela escura a passos largos, pois já era madrugada e aquela parte do bairro não o agradava nem um pouco. Era engraçado que se preocupasse com a segurança daquele percurso, tendo em vista o rumo que tomava. Havia acordado fazia algumas horas, em uma cama de hospital, sua colega de quarto coberta dos pés à cabeça por um lençol, os sensores eletrônicos e monitores cardíacos ligados a ela já não transmitindo qualquer sinal. O sonho de três dias do qual despertara era repassado inteiramente em seus pensamentos, intercalado com a lembrança de todos os momentos bons e ruins que havia passado com ela durante todo o tempo que tiveram um com o outro. A despeito de todos os momentos felizes, sua vida juntos havia sido definida por uma série de abusos, violência, depressão e erros grotescos, e talvez tivesse sido isso que motivou a decisão dela de, durante a discussão dos dois, três dias antes, assumir o volante e guiar o carro reto para a pista contrária, tornando-o um alvo perfeito para o entregador apressado que se preocupava com os 120 quilômetros que precisava percorrer com seu caminhão de mudanças ainda naquela manhã. É provável que essa não fosse a sua intenção, mas a maneira como o carro se posicionara naquela fração de tempo foi o que tornou o acidente uma fatalidade apenas para ela, e foi seu corpo esmigalhado que amorteceu o impacto que toda a massa de ferro comprimido teria causado a ele, tornando-o provavelmente um vegetal sangrento e desfigurado, da mesma maneira que ela se encontrava durante todo o período em que ele estivera inconsciente. E então tudo voltava ao sonho, que terminava com as últimas manifestações histéricas do monitor cardíaco ligado à sua amada. E o sonho o havia incumbido de uma tarefa. Iria ao inferno para trazê-la de volta. Iria literalmente ao inferno.

2
Já havia percorrido alguns quilômetros, seguindo em uma direção puramente instintiva, quando avistou o que procurava. Alguns metros ao longe, no meio do asfalto daquela rua pouco movimentada, sob a luz oscilante de um poste de iluminação, jazia um corpo inerte. Se aproximou com cautela, e agora mais próximo, podia constatar que se tratava realmente de um cadáver, estendido no chão, pontuado de perfurações a bala, suas vestes completamente enegrecidas pelo sangue. Não sabia de quem se tratava, nem as circunstâncias de sua execução, mas sabia que, seja quem fosse, estava indo para o mesmo lugar que ele próprio pretendia adentrar. Restava então esperar. Procurou por seus cigarros, e não os encontrando, pois devia tê-los esquecido quando juntou seus pertences apressadamente para fugir do hospital, revistou o morto, e por sorte, encontrou uma carteira pela metade, da qual conseguiu salvar uns dois ou três cigarros que não estavam empapados de sangue, e um isqueiro, que ajudariam a tornar a espera um pouco mais confortável.
A madrugada quase se aproximava do final quando o cadáver no meio da rua abandonou seu descanso estático e se levantou desajeitadamente, apoiando-se nas mãos, aparentemente ainda debilitado pelas dezenas de projéteis fundidos ao seu corpo. Jörn levantou do cordão da calçada, onde esperava, e se aproximou do homem, que agora o fitava com uma expressão vazia.
-Vai a algum lugar? – Perguntou ao cadáver.
-Sim...
-Sabe o caminho?
-Não tenho certeza, mas vou por ali.
Apontou em sua direção, e Jörn se virou para observar o caminho que o homem indicava. Nada de diferente, apenas uma pequena ruela quase despercebida entre dois velhos apartamentos. Enquanto observava, o homem já o havia ultrapassado e seguia pacientemente pelo caminho que havia indicado. Jörn o seguiu. Andou por uma série de becos escuros entre prédios antigos, sem que se deparasse com qualquer alma viva. Chegou à conclusão de que em qualquer outra noite, em qualquer outra circunstância, nenhum daqueles caminhos existiria, e estavam lá apenas por aquele instante, apenas para que ele e seu bizarro guia concluíssem sua viagem.

segunda-feira, 19 de março de 2012

O Caçador de Unicórnios - Parte I

"O Caçador de Unicórnios" é um título provisório, e provavelmente continuará assim por um bom tempo. Ainda não pensei em outro melhor. A ideia a ser passada por ele é a busca de algo inalcançável, tão distante quanto capturar um unicórnio. Abaixo, o primeiro capítulo, baseado numa situação que eu mesmo vivi.

Maneiras Engraçadas

Jorge estava sentado em sua confortável poltrona marrom, na aconchegante sala de sua casa. Lia o jornal daquele sábado ora chuvoso, ora ensolarado, que, injustamente, não foi decorado por um arco-íris. A suave melodia que vinha da rua não havia lhe chamado atenção antes de sua mulher, Marta, fazê-lo. Quando parou para prestar atenção, esquecendo as terríveis crises impressas nos papéis que deixou de lado, ouviu uma voz não de todo bela, porém ao menos simpática; cantava sobre uma mãe que colocaria todos os seus medos no seu bebê. Lembrou-se da sua, e a música lhe pareceu boa.

Aproximou-se da janela por onde Marta mirava a praça em frente a sua casa. Um jovem com cabelos longos, soltos e bagunçados, tocava um violão negro com cordas de nylon, sentado em um muro baixo, de lado para o lugar de onde Jorge o via sem ser notado. Passava por ele um suave filete de fumaça oscilante; uma vareta de incenso estava posta em uma fresta entre as pedras do muro.

- O que foi? – Jorge perguntou, alguns segundos após chegar a janela.

- Ta vendo aquele sujeito?

- Sim, que tem?

- To desconfiada dele.

- Hum... Por quê?

- Olha o jeito dele, sozinho na praça, fazendo fumaça essa hora, deve ser um drogado!

- Aquilo é incenso...

- Deve ser pra disfarçar o cheiro da maconha! Te garanto que daqui a pouco ele acende uma porcaria dessas!

- Bom, ainda não vi nada de errado, mas se ele acender, eu chamo a polícia.

O final da tarde estava chegando, o casal ficou quieto por alguns instantes. O vizinho da frente foi até o pátio, deu uma boa olhada com uma cara séria no jovem, que não deu atenção a sua presença e continuou tocando uma canção sobre um amor que continuaria mesmo se o sol se recusasse a brilhar.

Um homem e uma mulher passaram pela calçada ao lado da praça, cada um levando um cão em uma coleira. Olharam o violonista com expressões de simpatia, recebendo um sorriso em retribuição.

Uma senhora de idade avançada despediu-se de outra, que entrou em sua casa, e atravessou a rua, alguns metros antes de passar por onde aquele estranho estava sentado. Depois de tomar certa distância, voltou para o lado por onde seguia antes, movimento cuja intenção foi percebida por todos que compartilhavam daquele quase belo entardecer.

Seis ou quatro minutos se passaram, desde que Jorge deixou sua poltrona até o momento em que aquele sujeito foi embora, tranquilamente, carregando seu violão na mão direita.

Voltando-se novamente para o interior da sala, Jorge disse:

- É, de certa forma, ele não parecia certo.

- Ainda bem que já foi embora, imagina se começa a se juntar essa gente aí na frente!

- Melhor que continue tudo como está. Vou tomar um banho.

Mas, enquanto limpava os dedos dos pés, aquele senhor de meia idade pensava que as coisas nunca são as mesmas por mais de um instante.