sexta-feira, 30 de março de 2012

Os Confins - Parte I

Primeira vez que posto um texto em um blog... e é por partes, apesar de eu não fazer a mínima ideia de como dividir um texto. Pois bem, a proposta vai ficar bem clara no final. O título não sei se tem muito a ver, só sei que rima com "os quindins", então tá bom já.

1
Jörn  caminhava pela viela escura a passos largos, pois já era madrugada e aquela parte do bairro não o agradava nem um pouco. Era engraçado que se preocupasse com a segurança daquele percurso, tendo em vista o rumo que tomava. Havia acordado fazia algumas horas, em uma cama de hospital, sua colega de quarto coberta dos pés à cabeça por um lençol, os sensores eletrônicos e monitores cardíacos ligados a ela já não transmitindo qualquer sinal. O sonho de três dias do qual despertara era repassado inteiramente em seus pensamentos, intercalado com a lembrança de todos os momentos bons e ruins que havia passado com ela durante todo o tempo que tiveram um com o outro. A despeito de todos os momentos felizes, sua vida juntos havia sido definida por uma série de abusos, violência, depressão e erros grotescos, e talvez tivesse sido isso que motivou a decisão dela de, durante a discussão dos dois, três dias antes, assumir o volante e guiar o carro reto para a pista contrária, tornando-o um alvo perfeito para o entregador apressado que se preocupava com os 120 quilômetros que precisava percorrer com seu caminhão de mudanças ainda naquela manhã. É provável que essa não fosse a sua intenção, mas a maneira como o carro se posicionara naquela fração de tempo foi o que tornou o acidente uma fatalidade apenas para ela, e foi seu corpo esmigalhado que amorteceu o impacto que toda a massa de ferro comprimido teria causado a ele, tornando-o provavelmente um vegetal sangrento e desfigurado, da mesma maneira que ela se encontrava durante todo o período em que ele estivera inconsciente. E então tudo voltava ao sonho, que terminava com as últimas manifestações histéricas do monitor cardíaco ligado à sua amada. E o sonho o havia incumbido de uma tarefa. Iria ao inferno para trazê-la de volta. Iria literalmente ao inferno.

2
Já havia percorrido alguns quilômetros, seguindo em uma direção puramente instintiva, quando avistou o que procurava. Alguns metros ao longe, no meio do asfalto daquela rua pouco movimentada, sob a luz oscilante de um poste de iluminação, jazia um corpo inerte. Se aproximou com cautela, e agora mais próximo, podia constatar que se tratava realmente de um cadáver, estendido no chão, pontuado de perfurações a bala, suas vestes completamente enegrecidas pelo sangue. Não sabia de quem se tratava, nem as circunstâncias de sua execução, mas sabia que, seja quem fosse, estava indo para o mesmo lugar que ele próprio pretendia adentrar. Restava então esperar. Procurou por seus cigarros, e não os encontrando, pois devia tê-los esquecido quando juntou seus pertences apressadamente para fugir do hospital, revistou o morto, e por sorte, encontrou uma carteira pela metade, da qual conseguiu salvar uns dois ou três cigarros que não estavam empapados de sangue, e um isqueiro, que ajudariam a tornar a espera um pouco mais confortável.
A madrugada quase se aproximava do final quando o cadáver no meio da rua abandonou seu descanso estático e se levantou desajeitadamente, apoiando-se nas mãos, aparentemente ainda debilitado pelas dezenas de projéteis fundidos ao seu corpo. Jörn levantou do cordão da calçada, onde esperava, e se aproximou do homem, que agora o fitava com uma expressão vazia.
-Vai a algum lugar? – Perguntou ao cadáver.
-Sim...
-Sabe o caminho?
-Não tenho certeza, mas vou por ali.
Apontou em sua direção, e Jörn se virou para observar o caminho que o homem indicava. Nada de diferente, apenas uma pequena ruela quase despercebida entre dois velhos apartamentos. Enquanto observava, o homem já o havia ultrapassado e seguia pacientemente pelo caminho que havia indicado. Jörn o seguiu. Andou por uma série de becos escuros entre prédios antigos, sem que se deparasse com qualquer alma viva. Chegou à conclusão de que em qualquer outra noite, em qualquer outra circunstância, nenhum daqueles caminhos existiria, e estavam lá apenas por aquele instante, apenas para que ele e seu bizarro guia concluíssem sua viagem.

segunda-feira, 19 de março de 2012

O Caçador de Unicórnios - Parte I

"O Caçador de Unicórnios" é um título provisório, e provavelmente continuará assim por um bom tempo. Ainda não pensei em outro melhor. A ideia a ser passada por ele é a busca de algo inalcançável, tão distante quanto capturar um unicórnio. Abaixo, o primeiro capítulo, baseado numa situação que eu mesmo vivi.

Maneiras Engraçadas

Jorge estava sentado em sua confortável poltrona marrom, na aconchegante sala de sua casa. Lia o jornal daquele sábado ora chuvoso, ora ensolarado, que, injustamente, não foi decorado por um arco-íris. A suave melodia que vinha da rua não havia lhe chamado atenção antes de sua mulher, Marta, fazê-lo. Quando parou para prestar atenção, esquecendo as terríveis crises impressas nos papéis que deixou de lado, ouviu uma voz não de todo bela, porém ao menos simpática; cantava sobre uma mãe que colocaria todos os seus medos no seu bebê. Lembrou-se da sua, e a música lhe pareceu boa.

Aproximou-se da janela por onde Marta mirava a praça em frente a sua casa. Um jovem com cabelos longos, soltos e bagunçados, tocava um violão negro com cordas de nylon, sentado em um muro baixo, de lado para o lugar de onde Jorge o via sem ser notado. Passava por ele um suave filete de fumaça oscilante; uma vareta de incenso estava posta em uma fresta entre as pedras do muro.

- O que foi? – Jorge perguntou, alguns segundos após chegar a janela.

- Ta vendo aquele sujeito?

- Sim, que tem?

- To desconfiada dele.

- Hum... Por quê?

- Olha o jeito dele, sozinho na praça, fazendo fumaça essa hora, deve ser um drogado!

- Aquilo é incenso...

- Deve ser pra disfarçar o cheiro da maconha! Te garanto que daqui a pouco ele acende uma porcaria dessas!

- Bom, ainda não vi nada de errado, mas se ele acender, eu chamo a polícia.

O final da tarde estava chegando, o casal ficou quieto por alguns instantes. O vizinho da frente foi até o pátio, deu uma boa olhada com uma cara séria no jovem, que não deu atenção a sua presença e continuou tocando uma canção sobre um amor que continuaria mesmo se o sol se recusasse a brilhar.

Um homem e uma mulher passaram pela calçada ao lado da praça, cada um levando um cão em uma coleira. Olharam o violonista com expressões de simpatia, recebendo um sorriso em retribuição.

Uma senhora de idade avançada despediu-se de outra, que entrou em sua casa, e atravessou a rua, alguns metros antes de passar por onde aquele estranho estava sentado. Depois de tomar certa distância, voltou para o lado por onde seguia antes, movimento cuja intenção foi percebida por todos que compartilhavam daquele quase belo entardecer.

Seis ou quatro minutos se passaram, desde que Jorge deixou sua poltrona até o momento em que aquele sujeito foi embora, tranquilamente, carregando seu violão na mão direita.

Voltando-se novamente para o interior da sala, Jorge disse:

- É, de certa forma, ele não parecia certo.

- Ainda bem que já foi embora, imagina se começa a se juntar essa gente aí na frente!

- Melhor que continue tudo como está. Vou tomar um banho.

Mas, enquanto limpava os dedos dos pés, aquele senhor de meia idade pensava que as coisas nunca são as mesmas por mais de um instante.