sexta-feira, 25 de maio de 2012

O Barqueiro - Parte III


O Barqueiro conduziu seu barco até uma margem qualquer, e o abandonou. Seguiu então rastejando por ruas populadas de gente ocupada. Suas mãos se feriam à medida que se arrastava pelo piso áspero, e o sol quente lhe queimava as costas, e as fazia arder. Ninguém amparava o Barqueiro, e os poucos olhares que recebia eram de pena desapegada. Cidade fantasma populada de gente. Gente sem alma, sem vida, que ainda assim perambulava freneticamente por aquelas ruas, temente à morte. Ali estava o Barqueiro, figura denegrida, humilhada, fraca, se arrastando delirante em sua ânsia por encontrar. E assim continuou, continuou por anos, atravessando aquele caminho que seguia sempre em linha reta, e que o Barqueiro, e o Barqueiro apenas, percebia, se mantinha delimitado por paredes formadas do que pareciam ser indivíduos de terno e gravata, e malas na mão, completamente estáticos, imutáveis, inflexíveis. Ninguém tentava ultrapassar aquelas paredes, ninguém parecia se dar conta de que se encontrava, não em uma prisão, mas em um caminho tendencioso e manipulado. Mas o barqueiro, ainda que compreendesse aquele horror tão intensamente sutil, continuou pelo caminho. Prosseguiu, arrastando com a força dos braços seu corpo magro que terminava em uma cauda dupla formada por suas pernas imóveis. Continuava ignorado, tendo muitas vezes suas mãos pisoteadas pelos autômatos vestidos de gente que perambulavam em ida e vinda por aquela grande estrada reta de margens emparedadas.
                Exausto e com as mãos formigando, os braços já trêmulos, os músculos explodindo de agonia, o Barqueiro resolveu mudar de estratégia. Tentou levantar-se, e em sua primeira tentativa, recebeu um encontrão de um dos transeuntes. Caiu com o rosto no chão. Viu o homem que o havia derrubado continuar caminhando, aos tropeços, até se reestabilizar, sem ao menos ter se dado conta do obstáculo. Tentou novamente. Seus braços pareciam agora acometidos por uma espécie de epilepsia, que contaminava até mesmo sua face, fazendo seu dentes se chocarem, em frenesi nervoso, uns contra os outros. Estava com os braços completamente tensionados, o tronco elevado, mas as pernas se mantinham penduradas no corpo, débeis, inúteis, e o barqueiro desabou de exaustão.  Não. Não desistiria ainda. Pensou. Concentrou-se em suas pernas. O esforço mental empregado parecia muito pior do que o esforço necessário para se erguer sobre seus braços, mas não o exauria tanto, e ele continou. Já estava há horas engajado em uma luta mental contra seus próprios nervos, quando sentiu os músculos da coxa latejando. Bom sinal. Manteve o esforço, manteve-se imaginando os impulsos elétricos que se alastravam pelos nervos de sua perna até chegarem à extremidade dos dedos, e de volta. Via esses impulsos. Sentia-os. Sentia-os de verdade. E a perna se moveu.
Apoiou-se novamente nas mãos, e os braços já não doiam tanto. Levantou-se cambaleando, uma única perna provendo toda a sustentação do seu corpo. As paredes lhe seriam úteis agora. Andou, apoiado nas barreiras humanas, se segurando em mangas escuras de tecido fosco, lapelas de corte impecável, maletas brilhantes de verniz. Com o passar das horas já conseguia andar nas duas pernas. E então se viu livre da cidade, das estrada, das barreiras, das pessoas, ou seja lá o que elas fossem. Estava em uma enseada. Ouvia gaivotas dialogando em grasnados e sentia o cheiro salgado do litoral. E ao longe, cortando a beleza límpida e harmoniosa do mar, um banco de rochas que emergia da água. E sobre ele um barco encalhado.

O Barqueiro - Parte II


Se via então a contemplar o espectro luminoso que refletia na superfície do lago, diante de seus olhos. "Não é mesmo uma pena?" Pensou o Barqueiro, zombando de si mesmo. Sentou à borda do barco, superfície instável que outrora servira de ferramenta em sua busca incessante. Se pôs a pensar, com os olhos fixos na água, e assim permaneceu, até que sua barba tomasse conta do rosto, sua pele se colasse aos ossos e suas pernas se atrofiassem. Decidiu então que se aventuraria pela terra, abandonando por hora seus sonhos de barqueiro, até que pudesse aprender a nadar. Mas teria agora que reaprender a andar.

O Barqueiro - Parte I

Escrevi isso lá pelo final de 2009, acho que no Orkut. O.o

O Barqueiro remava pela escuridão enevoada das calmas águas que o cercavam, a chama fraca de uma lamparina como sua única guia. Atravessou a esmo a cortina negra da noite, sua frustração pela busca falha se intensificando, trazendo pensamentos negativos à sua mente:
"Não, eu não farei o que eles querem. Ao invés disso, tentarei estender minha existência ociosa e passivamente, até o ponto em que não mais poderei tolerar a coação de meus objetivos. Então chegará a hora de extinguir a chama, de uma vez por todas."
Olhou então para o espelho distorcido da água, o fluxo do tempo refletindo até suas retinas.
Atravessou o reflexo com os olhos, e percebeu que só lhe restava observar.
Pois ele era um barqueiro, e remar era só o que sabia.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Os trilhos

Escrevi isso aqui lá pelo final de fevereiro. É o sentimento que me causa ouvir "All I Want", do A Day to Remember, e eu fico feliz de poder descrevê-lo. E tô aproveitando o blog pra postar, pra que esse texto não se perca pelo facebook, ou na ocasionalidade de um hd queimado.

Eu me encontrava deitado sobre os trilhos, aguardando o momento em que começassem a vibrar. Foi sutil à princípio, um reverberar quase imperceptível que se alastrava pelo ferro. Foi ficando mais forte, até o ponto em que era possível notar a poeira que levantava das vigas. Me pus de pé e esperei até que o gigante de aço entrasse em meu campo de visão. E lá estava ele, veloz, imponente, reluzindo contra a luz alaranjada do pôr-do-sol. Desatei a correr pelos trilhos, em direção àquele colosso mecânico. Eu corria rápido, e sentia o vento resfriando o suor em minha testa, um turbilhão de pensamentos repetidos girava em minha cabeça: -Tudo que eu quero é um lugar pra chamar de meu. Eu sentia o trepidar dos meus passos em contato, ora com o saibro, ora com a madeira: -Tudo que eu quero é um lugar pra chamar de meu. Cada vez mais perto agora. Um apito soava, alertando que o trem não pararia. Eu também não: -Tudo que eu quero é um lugar pra chamar de meu. O tom do apito era quase uma súplica agora. Eu sentia a turbulência da aproximação com o imenso corpo. Me armei, com um ombro à frente, ainda em movimento, pronto para o choque: -Tudo que eu quero é um lugar para chamar de meu. Aconteceu. Por uma fração de segundo tudo pareceu tomado por vácuo. Nenhum barulho. E então o estrondo. A mistura de atrito, deslocamento de ar e metal retorcendo deram origem a um som ao mesmo tempo grave e agudo, dissonante, ensurdecedor. Vi os vagões que se engavetavam, e que sem espaço para se acomodarem no solo, começavam a subir e se revirar em várias direções. Caos, faísca, fumaça, fogo. Eu ainda não havia parado, e quando finalmente tomei controle do impulso remanescente da corrida, já havia percorrido toda a extensão do trem, e me virei para observá-lo. A fumaça que subia em padrões espiralados por entre as ferragens dava a impressão de que o metal se movia, como a respiração fraquejante de um enorme animal que jazia no solo, abatido, derrotado. E eu permanecia nos trilhos, de pé, ileso. E tendo o mundo inteiro à minha frente.

Os olhos


‎"-E como tu vai resolver essa merda agora?! - Acho que tinha sido a última coisa que eu ouvi, antes de me deixar absorver em pensamentos. Eu já estava no meu quarto cigarro, mas havia fumado apenas o primero. Todos os outros tinham sido acendidos por puro reflexo, depois que eu, tarde demais, e não de todo atento, percebia as cinzas acumuladas no chão e a bituca acabada, pendendo entre os dedos. Eu olhei mais uma vez pra ela, aquela mulher raivosa que agora cuspia xingamentos na minha cara. Exceto pelo belo olho azul que me assistia vidrado e sem piscar, enquanto a boca entoava as mais belas ofensas que ela conhecia, não havia mais nenhum traço da beleza modesta que ela exibira aos 19, quando nos conhecemos e embarcamos tola e impulsivamente nesse relacionamento fodido. Nem sei mais do que se tratava aquilo, parecia ainda um namoro, mas na verdade eram apenas dois idiotas que compartilhavam um apartamento podre e fedorento, e se aturavam por que ninguém mais os aturaria. No começo, aquela mutação exótica, um olho azul, o outro castanho, me atraia por inteiro. Mas com o tempo, à medida que me familiarizava com os defeitos e as imperfeições dela, passou a parecer para mim que era por trás daquele olho escuro que se escondia tudo de ruim que eu via nela. Eu não conseguia mais olhar para ele, e sempre me concentrava no azul. E só o que eu fazia no momento era olhá-la, ainda que na maior parte do tempo nem a visse mais, concentrado que eu estava em resolver na minha própria cabeça o problema que nós dois criamos juntos quando decidimos embarcar nessa bosta toda. Eu nem lembrava mais do que se tratava a discussão, alguma coisa sobre uma dívida que não conseguíamos pagar e agora era culpa minha. Ou podia ser também sobre a nossa discordância em que tipo de animal comprar para o apartamento. Ou sobre a caneca preferida dela que eu havia quebrado enquanto lavava a louça. Agora eu só fitava o cigarro, que já se encontrava perto do fim, sem ter sido tragado uma única vez. Era bonito como a luz da brasa oscilava no contato com o ar. Parecia algo pulsando, um coração batendo devagar, talvez. Eu precisava apagar aquele cigarro. Levei um tempo pra perceber que ela havia parado de falar, e me olhava apreensiva, algumas lágrimas de raiva escorrendo do belo olho azul. Ela devia estar esperando que eu dissesse alguma coisa. O que fiz, na verdade, foi passar uma mão pela nuca dela, algo que ela deve ter entendido como um gesto confortante, e que ela recebeu de bom grado. Me surpreendeu até. Mas eu precisava apagar aquele cigarro, e levei-o de encontro ao olho, que ela ainda tentou fechar, mas tarde demais. Me deleitei com a sinfonia gerada por aquilo tudo. O barulho fraco de algo fritando em uma chapa. O estalar dos frágeis tapas que ela desferia frenetica e instintivamente contra o meu rosto. O longo berro de agonia. Eu odiava aquele olho castanho, mas foi o azul que eu destruí. Agora não havia mais nada nela de que eu gostasse, nada mais que me prendesse a ela, e eu podia enfim ir embora."