sábado, 15 de setembro de 2012

Dos blues em vermelho


    Fitava-o daquela mesa logo à frente do palco. Amava-o. Tinha consciência de todos os olhares, de toda a falsa admiração e interesse que também o fitavam, dos deslumbres momentâneos que se extinguiriam ao término daquele blues. Trechos da carta que escreveria para ele rodopiavam em sua cabeça, dispersos:
   “...ultrapassaste a parede frágil da minha indiferença, e fizeste teu ninho no porão escuro em que por tantos anos mantive encaixotados todos esses sentimentos empoeirados, dos quais descobri que ainda posso usufruir, como se nunca ninguém os tivesse quebrado...”
   “...viverei por ti, manterei cada um dos que querem teu mal afastado, não deixarei que te roubem, que te coloquem no bolso e que ali te esqueçam. Te alertarei sobre o abismo das presunções interesseiras que te cercam...”
    "... cortarei tua garganta com lâmina fina e gesto delicado, para que o sangue, em tentativa desesperada de abandonar o corpo que agora perece, se depare com uma estreita passagem, por onde será convidado a escorrer preguiçosamente, levando consigo, entre seus pertences, tua consciência, tua vida. E nos curtos instantes de agonia que tu vivenciarás, e que para ti se farão décadas, eu te terei todo para mim, teus pensamentos, teus sentidos, tua dor, todos consequência de meu ato, até o momento derradeiro. O sentimento de uma vida, comprimido em um minuto. É o que quero de ti."
    Sentiu tudo isso no decorrer de uma música. Da primeira música. Sentiu que o conhecia melhor do que ele próprio, ainda que nunca antes o tivesse encontrado.