sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Foi preciso morrer


Karl deslizava pela rua, à noite, inconsciente de que caminhava. Os pensamentos abafavam o ruído de seus passos, gritando dentro dele, jogando em sua cara a culpa pelos seus erros, pelos erros de outros. Seus olhos estavam alheios a tudo, disfuncionais, e a consciência projetava em sua mente imagens do passado, que substituiam sua visão. Não percebeu a figura que se aproximava, de mãos trêmulas e intenção egoísta. O estranho também não percebeu a inocência no gesto distraído de Karl, que lhe esbarrara de leve o ombro, quando este se preparava para bradar as palavras que davam início ao assalto. Karl não via ainda seu agressor, ao passo que ele lhe entregava à testa o beijo frio do cano de aço, que em desespero impulsivo se colocou a cuspir chumbo e chamas. Karl só se dera conta do viciado que o assassinara por medo quando este revirava seu corpo à procura de seus pertences.
Mas a esta altura Karl já estava morto, e assim permaneceu por um bom tempo, tempo suficiente para perceber sua realidade. Desperdiçara os últimos minutos de sua vida em existencialismo desnecessário, em auto-piedade. Ali parado, sentindo o fluido rubro que vazava de seu lobo frontal, e aproveitando o tempo infinito de que dispunha, meditou. Decidiu por fim que viveria um pouco menos preocupado, olhando menos pra dentro de si, e mais à sua volta. Tateou pelo chão molhado de sangue, juntou os pedaços maiores de cérebro que pôde encontrar, colocou-os de volta pelo buraco da cabeça e cobriu com alguns cacos de crânio. Levantou-se e continuou andando, um tanto mais vivo, e com a cabeça um pouco mais vazia.