Fitava-o daquela mesa logo à frente do palco. Amava-o. Tinha
consciência de todos os olhares, de toda a falsa admiração e interesse que
também o fitavam, dos deslumbres momentâneos que se extinguiriam ao término
daquele blues. Trechos da carta que escreveria para ele rodopiavam em sua
cabeça, dispersos:
“...ultrapassaste a parede frágil da minha indiferença, e
fizeste teu ninho no porão escuro em que por tantos anos mantive encaixotados todos
esses sentimentos empoeirados, dos quais descobri que ainda posso usufruir,
como se nunca ninguém os tivesse quebrado...”
“...viverei por ti, manterei cada um dos que querem teu mal
afastado, não deixarei que te roubem, que te coloquem no bolso e que ali te
esqueçam. Te alertarei sobre o abismo das presunções interesseiras que te
cercam...”
"... cortarei
tua garganta com lâmina fina e gesto delicado, para que o sangue, em tentativa
desesperada de abandonar o corpo que agora perece, se depare com uma estreita
passagem, por onde será convidado a escorrer preguiçosamente, levando consigo,
entre seus pertences, tua consciência, tua vida. E nos curtos instantes de
agonia que tu vivenciarás, e que para ti se farão décadas, eu te terei todo
para mim, teus pensamentos, teus sentidos, tua dor, todos consequência de meu
ato, até o momento derradeiro. O sentimento de uma vida, comprimido em um
minuto. É o que quero de ti."
Sentiu tudo isso no decorrer de uma música. Da primeira
música. Sentiu que o conhecia melhor do que ele próprio, ainda que nunca antes
o tivesse encontrado.
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