"-E como tu vai
resolver essa merda agora?! - Acho que tinha sido a última coisa que eu ouvi,
antes de me deixar absorver em pensamentos. Eu já estava no meu quarto cigarro,
mas havia fumado apenas o primero. Todos os outros tinham sido acendidos por puro
reflexo, depois que eu, tarde demais, e não de todo atento, percebia as cinzas
acumuladas no chão e a bituca acabada, pendendo entre os dedos. Eu olhei mais
uma vez pra ela, aquela mulher raivosa que agora cuspia xingamentos na minha
cara. Exceto pelo belo olho azul que me assistia vidrado e sem piscar, enquanto
a boca entoava as mais belas ofensas que ela conhecia, não havia mais nenhum
traço da beleza modesta que ela exibira aos 19, quando nos conhecemos e
embarcamos tola e impulsivamente nesse relacionamento fodido. Nem sei mais do
que se tratava aquilo, parecia ainda um namoro, mas na verdade eram apenas dois
idiotas que compartilhavam um apartamento podre e fedorento, e se aturavam por
que ninguém mais os aturaria. No começo, aquela mutação exótica, um olho azul,
o outro castanho, me atraia por inteiro. Mas com o tempo, à medida que me
familiarizava com os defeitos e as imperfeições dela, passou a parecer para mim
que era por trás daquele olho escuro que se escondia tudo de ruim que eu via
nela. Eu não conseguia mais olhar para ele, e sempre me concentrava no azul. E
só o que eu fazia no momento era olhá-la, ainda que na maior parte do tempo nem
a visse mais, concentrado que eu estava em resolver na minha própria cabeça o
problema que nós dois criamos juntos quando decidimos embarcar nessa bosta
toda. Eu nem lembrava mais do que se tratava a discussão, alguma coisa sobre
uma dívida que não conseguíamos pagar e agora era culpa minha. Ou podia ser
também sobre a nossa discordância em que tipo de animal comprar para o
apartamento. Ou sobre a caneca preferida dela que eu havia quebrado enquanto
lavava a louça. Agora eu só fitava o cigarro, que já se encontrava perto do
fim, sem ter sido tragado uma única vez. Era bonito como a luz da brasa
oscilava no contato com o ar. Parecia algo pulsando, um coração batendo
devagar, talvez. Eu precisava apagar aquele cigarro. Levei um tempo pra
perceber que ela havia parado de falar, e me olhava apreensiva, algumas
lágrimas de raiva escorrendo do belo olho azul. Ela devia estar esperando que
eu dissesse alguma coisa. O que fiz, na verdade, foi passar uma mão pela nuca
dela, algo que ela deve ter entendido como um gesto confortante, e que ela
recebeu de bom grado. Me surpreendeu até. Mas eu precisava apagar aquele cigarro,
e levei-o de encontro ao olho, que ela ainda tentou fechar, mas tarde demais.
Me deleitei com a sinfonia gerada por aquilo tudo. O barulho fraco de algo
fritando em uma chapa. O estalar dos frágeis tapas que ela desferia frenetica e
instintivamente contra o meu rosto. O longo berro de agonia. Eu odiava aquele
olho castanho, mas foi o azul que eu destruí. Agora não havia mais nada nela de
que eu gostasse, nada mais que me prendesse a ela, e eu podia enfim ir
embora."
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